CHAMADA DE ARTIGOS PARA DOSSIÊ: "História Pública, Mídias e Narrativas: Usos e disputas pelo passado".

2025-12-02

Resumo da Proposta

A História Pública no Brasil tem se consolidado como um campo de reflexões interdisciplinares, caracterizado por múltiplos olhares e diversas formas de atuação do historiador. Esse profissional, cada vez mais requisitado a ocupar um lugar público no debate historiográfico contemporâneo, vê-se diante do desafio de repensar seu papel social. Assim, a História Pública pode ser compreendida como a prática de historiadores que atuam em espaços que extrapolam os limites institucionais da academia, envolvendo-se com dimensões da memória, do ensino, da divulgação e da circulação do conhecimento histórico em meio a diferentes públicos.
Thomas Cauvin (2016) observa que a prática da História Pública se estrutura em dois eixos fundamentais. O primeiro diz respeito à própria concepção de História do profissional, isto é, à consciência da historicidade dos públicos, do reconhecimento da autenticidade histórica e à compreensão do papel das pessoas na construção colaborativa do saber. O segundo eixo refere-se à centralidade do público, entendido em sua pluralidade e como agente ativo na elaboração, na interpretação e na disputa pelos sentidos do passado.
Nessa perspectiva, observamos a História Pública em apoio de três conceitos basilares: o público, as narrativas do passado e a cultura histórica, os quais constituem os pilares de sua prática. É neste cenário, aberto e dialógico, que o historiador se posiciona, engajando-se nas discussões acerca das diversas perspectivas e usos do passado na sociedade contemporânea.
O termo público constitui, por si só, uma categoria crítica e ambígua. A historiadora Jill Liddington(2011) o define como uma “palavra perigosa”, dada a sua flexibilidade e aos múltiplos sentidos que pode assumir. As definições clássicas, como as de Hannah Arendt e Jürgen Habermas, baseadas na noção de pólis, revelam-se insuficientes para abarcar a complexidade dos públicos modernos, marcados por novas formas de participação e por redes de comunicação descentralizadas. Neste sentido, mais produtivo do que buscar uma definição homogênea é compreender o público em suas diversas camadas, práticas e expressões, valorizando sua diversidade e sua capacidade de agir nas disputas pelo passado.
A construção de narrativas, por sua vez, vai muito além do simples ato de contar uma história. Na tradição mitológica, Clio, a musa da História, simbolizava o dever de lembrar os feitos do passado. Essa lembrança, conforme ressalta Peter Burke, carrega uma dimensão ética profunda: “lembrar à sociedade aquilo que ela deseja esquecer”. Assim, narrar não se limita a organizar evidências, mas, empregar forma ao caos e atribuir significados à vivência histórica.
A história, antes focada em heróis e acontecimentos políticos, começou a incluir as vozes dos subalternos e as vivências diárias, um movimento impulsionado pela História Social e Cultural após a década de 60.
Contudo, no contexto contemporâneo, emergiu um novo desafio: o da proliferação de narrativas históricas no espaço digital, muitas delas produzidas por agentes que dominam a capacidade de navegar nas redes, mas não tem especialidade alguma, os “historiadores corsários” como afirmado por Pereira e Silva (2025). José d'Assunção Barros(2022) afirma que a não especialização dessas pessoas criou até mesmo uma nova profissão, a de “influenciadores”, os quais, em uma parcela significativa, são motivados por agendas políticas explícitas, elaboradas para difundirem interpretações do passado de maneiras equivocadas, muitas vezes negando ou afirmando o falseamento da história pesquisada, gerando uma ampla repercussão social.
A repercussão social destas narrativas vem na onda do movimento de expansão da influência das redes sociais digitais, pelo menos desde quando os algoritmos e as técnicas de machine learning passaram a ser aplicadas para moderar os conteúdos disponibilizados pelas plataformas, provocando o acesso cada vez mais compartimentalizado das pessoas aos conhecimentos e ideias disponíveis no mundo digital. Em outras palavras, as múltiplas narrativas passaram a ser percebidas pelos públicos a partir do seu sucesso em se espalhar rapidamente e, muitas vezes, essa clicks espalham conteúdos rasos, quando não flagrantemente negacionistas históricos.
A multiplicação dessas narrativas evidencia a coexistência de duas dimensões fundamentais da História Pública: a ficcional e a factual. Ambas contribuem para a construção de sentidos históricos, mas é na interseção entre elas que se manifestam os conflitos e as disputas pela legitimidade do discurso histórico.
Nesse processo, o historiador assume um papel essencial. Ele não deve ser percebido como um “policial histórico”, encarregado de supervisionar e censurar interpretações divergentes, mas sim como um mediador crítico, apto a interagir com diversos públicos e linguagens. Em um ambiente saturado de desinformação e de instrumentalização política do passado, cabe-lhe exercer uma atuação reflexiva, ética e comunicativa. Portanto, a criação, síntese e disseminação de narrativas verossímeis, baseadas em método, evidência e responsabilidade social, se torna uma forma de resistência e de comprometimento com o aprimoramento do debate público e da democracia na totalidade.
Portanto, neste processo de construção do saber histórico que engloba não só o público, mas também as diferentes vivências e experiências com História Pública, mídias e narrativas, propomos para este dossiê o recebimento de artigos que possam suscitar reflexões em três eixos principais. O primeiro versa sobre o Ensino de História e a História Pública, analisando a conexão potencial entre os espaços formais e não formais de aprendizado histórico. O segundo aborda a Construção e disputa das Narrativas, concebidas como verdadeiros campos de embate por poder, memória e representação. Por fim, o terceiro destaca o papel das mídias digitais na formação do conhecimento histórico, especialmente no contexto atual, marcado pela disseminação de fake news, negacionismo e pela denominada “era da pós-verdade”. É importante destacar que estes eixos não são herméticos, visto que as questões que abordam são compartilhadas entre si e também dialogam com outros campos, como ensino e teoria da história, historiografia, patrimônio e memória, para citar alguns deles.

Referência:


BARROS, José D'Assunção. História digital: A historiografia diante dos recursos e demandas de um novo tempo. Editora Vozes, 2022, p. 150-178;
CAUVIN, Thomas. Public history: a textbook of practice. Routledge, 2016.
DE CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um debate contemporâneo. Revista Transversos, v. 7, n. 7, p. 35-53, 2016.
FONTURA, Odir. Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube; in. BARROS, José D'Assunção. História digital: A historiografia diante dos recursos e demandas de um novo tempo. Editora Vozes, 2022.p. 150-178;
KELLEY, Robert. Public History: Its Origins, Nature, and Prospects. Santa Barbara: University of California, 1978.
LIDDINGTON, Jill. O que é História Pública? Os públicos e seus passados. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
LUCCHESI, Anita; CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História digital: Reflexões, experiências e perspectivas. História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, p. 149–63, 2016.
NOIRET, Serge. História Pública e Digital. São Paulo: Letra & Voz, 2015.
OGASSAWARA, Juliana Sayuri; BORGES, Viviane Trindade. O historiador e a mídia: diálogos e disputas na arena da história pública. Revista Brasileira de História, v. 39, p. 37-59, 2019.
SILVA, Daniel Ferreira da; PEREIRA, Márcio José. Disputas de narrativas, ampliação de públicos e os desafios do Ensino de História e das linguagens históricas na História Pública brasileira. Boletim do Tempo Presente, [S. l.], v. 13, n. 4, p. 160–191, 2025. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/tempopresente/article/view/22382. Acesso em: 7 out. 2025.